VIII REACT

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A arte da VIII ReACT

Inspirado pelo tema da VIII ReACT, Ion Fernandez de las Heras propõe uma série de composições que buscam colonizar paisagens de Frans Post (1610-1680) com o rio de lama do desastre de Mariana, de Friedrich Georg Weitsch (1758-1828) com o linhão de Tucuruí, e de Jacob Philip Hackert (1737-1807) com a hidrelétrica de Belo Monte.

Trata-se de uma proposta irreverente —um détournement situacionista— que busca criar estranheza ao juntar dois mundos ou escalas que não deveriam se integrar. No caso da pintura de Hackert, por exemplo, a colonização técnica contemporânea do território amazônico se infiltra de um modo quase imperceptível numa típica e aprazível paisagem do campo europeu do sec. XVIII. —O que aconteceria se Belo Monte se representasse como se fosse... "bela"?— O objetivo de Ion é criar um pequeno conflito mental: enquanto os olhos observam a composição de um modo estético (desestimando o conflito formal entre o fundo naturalista e o corpo estranho), o intelecto reage ao perceber a aberração que isso supõe.  Trata-se da procura desse fenômeno que a psicologia chamou de “cognição multiestável”, na qual —como na famosa ilusão pato-coelho—a imagem é ambígua ou reversível; em outras palavras, a figura é simultaneamente meio de duas percepções paralelas e incompatíveis, não sintetizáveis.

Ao justapor imagens e misturá-las formando um todo harmônico, a ironia se revela: o olhar europeu-naturalista contempla um monstro de concreto nascido da aliança entre Ciência, Estado e Capital que barra a água na Volta Grande do rio Xingu. O détournement inaugura, assim, uma espécie de instalação crítica da qual dificilmente se passa incólume. É impossível mesmo não reagir conceitual e afetivamente à imagem dos naturalistas Alexander Von Humboldt e Aimé Bonpland no Monte Chimborazo, cercados de instrumentos técnicos que dissecam animais, plantas e povos e, por trás, o Linhão de Tucuruí que atravessa territórios indígenas para chegar a Macapá e Manaus. Da composição emerge uma imagem que rearticula tempos, como se os naturalistas outorgassem aos índios o terrível futuro que o Ocidente lhes criou. Como no poema-música de Chicho Sánchez Ferlosio e Agustín García Calvo, A Contratiempo, em que Chicho canta para os barcos de Colón, chamando-os para dar meia volta e tentando convencê-los, por meio da descrição das devastações a que nos acostumamos, de que o mundo que vão criar, "seria melhor não vê-lo".

Seria melhor não ver o rompimento de tantas barragens de mineração, o rio de lama que abre caminhos de Mariana ao oceano Atlântico, o soterramento de centenas de pessoas em Brumadinho, em sua maioria trabalhadores e famílias negras rurais. Mas juntar mundos e escalas para rearticular passados, presentes, futuros e nos fazer ver o mundo devastado carrega em si uma potência, não da meia-volta, mas do desvio.  A crítica ao capitalismo tecnocientífico que a VIII ReACT nos convida não se faz como mero exercício desconstrutivista, mas como uma forma de imaginação que preconiza lutas imanentistas e moleculares.

 

      

Alexander von Humboldt und Aimé Bonpland am Fuß des Vulkans Chimborazo (Friedrich Georg Weitsch, 1806); Landscape with the Palace of Caserta and Vesuvius (Jacob Philipp Hackert, 1793); Brazilian Landscape with a House under Construction (Frans Post, circa 1655-1660)

  

  

Paisagem de Zelândia. Vista de Bjerresø Mark em direção a Vejrhøj e Dragsholm Manor (Johan Lundbye, 1840); Paisagem com moinho de vento perto de Schiedam (Johan Hendrik Weissenbruch, 1873); Monte Wellington e Hobart Town desde Kangaroo Point (John Glover, 1834); Ponta do Calabouço desde Glória (Henry Chamberlain, 1821)

 

Sobre o autor das imagens

Ion é antropólogo (doutor pela Universidad Complutense de Madrid e mestre pelo PPGAS/UFSCar) e arquiteto (ETSAB/UPC). É pesquisador associado aos grupos LE-E, Laboratório de Experimentações Etnográficas (PPGAS-UFSCar), Hybris - Estudo e Pesquisa sobre Relações de Poder, Conflitos, Socialidades (PPGAS-USP/UFSCar) e ao Grupo de Antropología de América (UCM). Como pesquisador, estuda problemáticas de estatalização e de antropologia do conhecimento e sua relação com a casa, o meio ambiente e o território no entorno rural do País Basco, prestando especial atenção aos aspetos imagéticos que interferem nessas problemáticas. Também trabalha como consultor técnico e como cartógrafo em projetos vinculados com questões ambientais e territoriais em MMMAPA. As imagens aqui reunidas se enquadram num interesse mais geral dele por analisar e explorar os modos em que o aquecimento global é comunicado, percebido e construído.


Composição da pintura de Henry Chamberlain (1821) com as plataformas petrolíferas em Norskehavet (Mar de Noruega).